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Eva, a árvore e o Adão

[Instruções de leitura: onde se lê Eva, leia-se Terra, onde se lê Adão, leia-se humano.]


Muito tempo depois de ter sido expulsa do paraíso, já coberta por roupas e ideias, Eva, com seu milésimo bebê no colo, olhando pela janela da lavanderia de seu apertado apartamento, viu, em meio a cidade cinzenta, uma macieira que, teimando em não esquecer da primavera, colocou seu vestido de flor.


A árvore sempre esteve ali. Mas Eva, mais cansada do que nunca, perdeu seus olhos naquela imagem, tentando fugir da miséria da vida pela beleza dos detalhes e, como quem olha para um espelho, enxergou o que, pelo costume, fingia não ver.


Bebê para cuidar, filhos para buscar, e-mails para responder, comida para fazer. Mas o coração de Eva, inquieto, esperava o fim do dia e a chegada de Adão, para fazer a pergunta que a árvore, dentro dela, havia feito brotar:


- Olá querida, cheguei.


Ela agiu normalmente. Serviu crianças e botou o jantar para dormir. E quando eles ficaram a sós:


- Adão, me conta de novo sobre a expulsão do paraíso?


Ele ergueu a coluna para falar importante e narrou, mais uma vez, a romântica história onde Deus, há muito tempo, havia feito ele primeiro, com muito amor, para lhe fazer companhia. E a Eva, por segundo, companhia da companhia. Adão também explicou que infelizmente a indisciplina dela mudou a ideia do criador que percebeu ser melhor pra eles, antes de viverem no paraíso, nascerem em um outro lugar, para sofrerem e evoluírem, até tornarem-se obedientes e serem aceitos de volta.


Eva escutou pacientemente, mas Adão percebeu nela, algo diferente:


- O que foi?


- Nada Adão. Mas tem certeza que você não inventou essa história para ter controle sobre a vida que eu produzo e me manter atada a essa situação, iludida, achando que esse sofrimento é para o meu bem?


- Ingrata! Eu fui expulso do paraíso por sua causa e mesmo assim estou aqui, te ensinando obediência e te ajudando a voltar para lá, eu sou a única chance que você tem.


Ele se irritou com os delírios dela e foi dormir. Porém, na manhã seguinte, não encontrou filhos, nem Eva. Apenas um bilhete:


“O paraíso sempre foi aqui Adão, e Deus, o ser que gera vida dentro dele, sou eu.”



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